Jornalista e crítico de cinema Segunda-feira, 14 de março, por volta das 15h20. O velho casarão no Pelourinho que funciona como sede da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) mais parece uma estufa, pois não há ar refrigerado.
Nos seus diversos compartimentos, percebe-se certo desconforto e uma leve apreensão no semblante de seus quadros, formados, em grande parte, por mulheres.
Pudera. Além do calor infernal, naquele dia a alemã de 39 anos, Nehle Franke, vivia, oficialmente, a sua primeira jornada à frente da Funceb, substituindo a gaúcha Gica Nussbaumer.
Ainda que a dita fase de transição estivesse terminada, sentia-se, claramente, que a nova mandatária “pisava em ovos”, tanto que mostrava-se por demais “diplomática”, medindo as próprias palavras.
“Não quero falar em continuação ou continuísmo: só sei que a gestão de Gica foi boa”, disse a alemã de Munique, com seu sotaque germânico.
Aliás,o fato de ser uma alemã à frente da Funceb não a incomoda, a ponto de ela mesma não temer patrulhamentos ou ataques xenófobos. “Desde que pisei no Brasil, há 15 anos, jamais sofri qualquer tipo de discriminação ou preconceito, pelo contrário”, confessou a nova gestora, que é encenadora teatral de reconhecido talento e esteve à frente das edições do Festival Internacional de Artes Cênicas, o Fiac.
Indicada pelo novo secretário da Cultura da Bahia, Albino Rubim, que aos poucos começa a mexer nas peças de um delicado tabuleiro de cargos que ainda se mantém à feição do seu antecessor, Márcio Meireles, Nehle enfatiza que o importante agora é observar o cenário à sua volta.
“Preciso de tempo e, com certeza, a nossa gestão vai continuar aberta ao diálogo”, faz saber.
Do outro lado, o seu “padrinho político”, Albino Rubim, faz questão de enumerar as razões pelas quais a escolheu, independentemente da nacionalidade: “Observei a sua competência, o fato de ela ser conhecida e reconhecida e, principalmente, por achar que a área de teatro deve ser reforçada na Bahia”.
Cosmopolitismo Questionado a respeito de possíveis críticas pelo fato de Nehle ser alemã, em uma terra que muitos consideram “colonizada”, Rubim também foi taxativo: “Trata-se de uma bobagem: a Bahia, por tradição e cosmopolitismo, sempre esteve aberta aos estrangeiros, assim como muitos dos nossos se afirmaram em outras plagas, como foi o caso do artista plástico Emanuel Araújo em São Paulo”, comparou ele.
Atento aos acontecimentos, o cineasta e organizador do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, Walter Lima, acredita que a presença da alemã à frente da Funceb é positiva por tratar-se de alguém que esteve do “outro lado”.
“Ela é uma pessoa credenciada e sabe das dificuldades e das demandas do setor cultural”, afirma Lima, para quem a experiência da nova gestora será fundamental: “Acho que ela sabe quais são os pontos nevrálgicos da cultura baiana”.
Por sua vez, o diretor teatral Paulo Dourado é de parecer que Nehle peca pela “pouca experiência em cargos burocráticos”, deficiência que, segundo ele, pode ser superada através de algumas de suas qualidades, pois, na sua visão, não lhe faltam “ousadia e imaginação”.
Tradição Como acredita Dourado, Nehle não pode ser taxada de forasteira, uma vez que encontra-se na Bahia há muito.Sobre a questão, aliás, o diretor teatral faz saber que há uma certa tradição do estado da Bahia em incorporarem seus quadros gestores de fora, principalmente na área acadêmica.
“Foi assim desde Lina Bo Bardi, passando por Koellreutter , que trouxe Smetak para cá, sem falar de Martim Gonçalves, um pernambucano”, lembra Paulo Dourado, enumerando as áreas de patrimônio público,música e teatro. E Dourado vai além: “Acho que ela pode aplacar o terror cultural instalado na Bahia e colocar a burocracia a serviço da cultura”, disse ele, explicitando certa crítica à administração passada.
Fala baianês? Curiosamente, ao ser indagado a respeito da questão, o ex-secretário da cultura do governo de Waldir Pires, José Carlos Capinan, mostrou-se surpreso com a indicação de Nehle. “Quem é?”, perguntou o presidente do Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira, que, depois, ao saber que se tratava de uma diretora teatral alemã, afirmou não ter nada contra a legião de estrangeiros que aportou e ainda aporta na Bahia.No entanto, não deixou de perguntar: “Ela fala baianês?”.
Funceb teve atribuições modificadas como tempo
A Funceb que a alemã NehleFranke assumiu oficialmente na segunda-feira já ostentou o status de secretaria de cultura. Tanto que, no “reinado” do PFL, entre os anos de 1990 e 2005, ainda que oficialmente subordinada à então Secretaria de Cultura e Turismo, a entidade era uma espécie de poderoso corpo autônomo por onde poucos eleitos trafegavam com certa desenvoltura.
Descentralizada e redimensionada a partir da gestão de Márcio Meireles à frente da Secult, entre os anos de 2007 e 2010, a Funceb deixou de concentrar certas atribuições e as redirecionou para outros “satélites” governamentais. Assim, alegando questões estratégicas e funcionais, na gestão da recém substituída Gica Nussbaumer, pescada na área acadêmica, a Dimas (Departamento de Multimeios) e as diretorias de Biblioteca, Arquivos e Literatura ficaram respectivamente subordinadas ao Irdeb e à Fundação Pedro Calmon.
Agora, no entanto, segundo adiantou o novo secretário de Cultura, Albino Rubim, a Funceb vai passar por mudanças. A área de arquivos e biblioteca, por exemplo, continuará sob a batuta da Fundação Pedro Calmon, mas a “literatura” volta a ser regida pela instituição presidida por Nehle Franke.
“Precisamos tratar a literatura de uma forma mais próxima”, disse o secretário Albino Rubim sobre o tema.
Ministra Ainda de acordo com Rubim, que não concorda com o alarmismo sentido na Bahia segundo o qual a nova ministra da Cultura, Ana de Hollanda, vai voltar a direcionar as ações do Minc para o eixo Rio/São Paulo, um dos objetivos da nova gestão da Funceb é justamente aproximar-se da Funarte, a Fundação Nacional de Artes.
“O Minc fez um trabalho exemplar de inclusão nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira e, pela sua nova composição, mantém um perfil nacional”, afirmou Rubim, adiantando que, por conta disso, será revista a política para os nove centros culturais do interior ligados à Funceb:“Vamos tirar os centros culturais do interior e fazê-los espelhos da Funarte, assim como eles vão servir também à Fundação Pedro Calmon”, contou o secretário.
Ainda que aparentemente a Funceb não vá, a curto prazo, promover mudanças substanciais em suas políticas, pelo menos a partir das palavras de Rubim, há quem chame a atenção para possíveis descontinuidades de gestão.
É o caso do artista visual e ativista cultural Flávio Lopes, para quem as conquistas que foram alcançadas nos últimos anos na área cultural foram importantes e devem continuar a acontecer.
“Precisamos acabar com um hábito comum nas gestões públicas brasileiras que é aquele de mudar programas que vêm dando certo, muitas vezes por necessidade de novos arranjos políticos dentro das estruturas partidárias”, faz saber o artista visual Flávio Lopes.
A Tarde
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