“Ilusões não se comem, mas alimentam”
(Gabriel Garcia Marquez)
Os autores Marcos Cesário e Edmar Conceição reuniram o que não é fácil, competência para publicar um livro. De bonito formato e finíssima qualidade gráfica, nele estão reflexões que vêm ganhando forma ao longo de suas vidas pessoais.
Não são reflexões quaisquer. Para botar um tempero, eles publicam o instantâneo de seus diálogos, gravados num fundo de quintal. Conversas daquelas que a gente faz quase em qualquer momento, em algum tranqüilo lugar, ao som de alguma música em baixo som, para convencer a um interlocutor inteligente.
Conhecidos pela capacidade de manifestar insatisfações por via da arte, os autores vem publicando indignações cada vez mais acentuadas e, em Iludidos, pisam bastante no terreno da literatura e da filosofia. O que os impulsiona para esta experiência de 68 páginas poéticas é, de forma declarada ou implícita, a abordagem de temas “proibidos”, como a revelação de eventuais ressentimentos, traumas, vitórias e derrotas trazidos de suas vidas na infância. Eles são combatentes natos de discriminações, distorções e aberrações que abarcam a humanidade. Marcos, como Edmar, cometem exposição pública em áreas artísticas variadas e se acumpliciam em leituras nem sempre coincidentes, mas intensas e delas deixam pegadas incisivas. Em suas falas (Iludidos mostra), dramaturgias, curtas metragens, crônicas, livretos, poemas e fotografias estão vestígios de que pensam e agem fortemente. Diante de regras “racionais” se enquadrariam nos extremos.
O que eles botam pra fora no diálogo dos quintais que gerou o livreto, os temas da infância, talvez não passe de pretexto. São fatos vigorosos e singulares, que em Iludidos servem apenas de razão para abordar o universo do conhecimento a que ambos assomaram. E aí corajosamente eles assumem passos que os arremessam à necessidade de dizerem da melhor forma possível que aqueles sentimentos de ontem estão prospectados hoje e prontos para serem espalhados num padrão superior de questionamento e notícia. O que não é pouco. Implica valentia, autoconfiança e risco calculado. Se eles assim não o dizem é, porém, o que o diálogo que gravaram nos quintais discursa.
A verdade de que nesse nosso recanto de mundo “todos lêem e poucos escrevem” é bem conhecida, principalmente por Cesário e Edmar, que além do mais pensam, sentem e reagem. Tal verdade é uma realidade em diversos mundos visitados pelos autores: seja no planeta de Ítalo Calvino (leia o mundo ao contrário e tudo fica claro) ou de Cervantes, Oscar Wilde, Nietzsche, Camus ou Gibran. Nem é preciso mergulhar na superfície de Iludidos para sentir que os autores se dão à importância de pensadores, filósofos, pedagogos, escritores – seara que lhes é comum. Logo lembro-me de dois bonfinenses: um é o poeta Jotacê Freitas enfatizando a tese de que “poeta é quem se sente poeta”, outro é o escritor Hélio Freitas endossando um dos nossos autores como “filotógrafo (filósofo fotógrafo)...”.
O que os autores examinam e questionam no decorrer desse Iludidos, de aparente inocência, são conceitos que crivaram todas as civilizações de indagações e respostas filosóficas até hoje esgrimadas. É basicamente o que fomenta o pensamento dos dois autores. É um buraco fundo, em que a insatisfação envolve os conceitos de amor, perdão, paixão, virtude, arte, saber – e a esperança de resposta continua ilusória. Os gregos que viveram a filosofia do casco da cabeça pra dentro deram um show de definições. Já naqueles idos, poucos estavam habilitados e, destes poucos, só os mais audaciosos fizeram época. Explicitamente ou não, estes e outros conceitos estão na alça de mira de Edmar e Marcos, em Iludidos – não como solução, sim como não-aceitação. Ainda que disfarçadamente, sob o empuxo de indignações e falta de certeza (é o que o homem quer, segundo Da Vince, e não maravilhosas novidades), eles espicaçam os “normais”.
Verdade, eles não propõem alguma doutrina para reinventar o amor, na dimensão do estudado pelos helênicos, bem assim não reconceituam neste impresso tantos outros sentimentos valorados em Atenas. Não é a proposta. Feita essa ressalva, dispensa dizer que Edmar e Cesário não aceitam as ilusões que definem e submetem a vida. Formam um par de amigos que tem dentro de si a rebelião reclamada por Paulo Freire para a humanidade. Como ambos pensam – o que em certas escalas é incomum, no nosso tempo, região e no reino contemporâneo da uniformidade informática – pensam relativizando: tal Sócrates ao negar a existência de uma verdade absoluta (cada indivíduo possui a sua verdade). Mas, diferentes de Sócrates, que nada escreveu, Iludidos está aí, prenhe de retórica, com a arte de falar por si lançando mão de Hermann Hesse (que diz que cada um só pode interpretar a si mesmo); ou recorrendo a Chico Buarque (não pra se salvarem de ser “heróis” e “vilões”, pra denunciarem comportamentos conflitantes). O apelo que os autores fazem a Edgar Allan Poe, Exupéry, Gabriel Garcia Marquez, Vinicius de Moraes, Manoel de Barros, Gandhi, Woody Allen ou ao Todo-Poderoso é fundamental para manifestar o vasto campo temporal e geográfico visitado pela curiosidade intelectual de ambos. É bom que se mostrem assim.
No mundo de perplexidades de Cecília Meireles, os autores mostram que “A vida só é possível reinventada” e valorizam o menino de sete aninhos que dá um estalo: Mãe, por que Deus não perdoa o Diabo? Tendo-se como amigos-irmãos, da mesma maneira que apoiados em escritores geniais, Cesário e Edmar se provocam (“Consciência e covardia são a mesma coisa”) e estendem a provocação ao leitor: “O escuro me ilumina”.
O diálogo travado entre os dois autores, num fundo de quintal, com o gravador a queima-roupa e no puro improviso é uma ousadia. Um desafio à boa memória, vivacidade e coerência para manter o tema. Iludidos é em sua maior parte assim, não elaborado e não rebuscado – gramaticalmente revisado, sim. Nesse particular, o livro é diferente de Fedro, cujo diálogo tematicamente sistematizado se dá com personagens criados (para explicar Sócrates) por Platão, “fora dos muros de Atenas”. Já em Iludidos o diálogo sai meio “no tapa”, entre personagens reais, dentro dos muros de quintais.
O livreto, prosaico, dominado pela subjetividade e conjunto de déias a que poucos se arriscam, será distribuído seletiva e gratuitamente. Uma maneira de dar a conhecer que desses rincões espirram coelhos. Há escritores nos sertões. Maomés que têm a declarar às montanhas. Nos idos da história muitos hesitaram, não Marcos Cesário e Edmar Conceição, eles assinam que são iludidos e que podem estar iludindo. Dessa forma, não fogem à intrepidez de Cazuza, que em Maior Abandonado canta que mentiras sinceras lhe interessam. Ambos os autores sabem pertencer a uma espécie falível, mas buscam ser verdadeiros, capazes de ouvir que “a burguesia fede” e admitirem (como Cazuza) “eu também cheiro mal”.
O opúsculo Iludidos não valeria muito se tomado como choramingo de estórias infantis. Posto no contexto da literatura vale como anúncio semi-socrático e não-cartesiano: ainda que saiba que nada sei, penso; logo quero mostrar que sei, e não faço por menos. Posto no contexto de qualquer lugar é um furar de cerco: saibam todos que aqui há quem quer e pode lançar um livro. Essas deduções quase certamente têm validade para os dois autores. Sem escapatória, um livro é um fenômeno, haverá sempre alguém a querer desvelá-lo ou aos seus autores. Neste caso, os autores recorrem à filosofia com mostras de que são amigos do conhecimento e amantes do saber.
Antonio Britto (também iludido)
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