Cláudia Sousa Leitão1
Universidade Estadual do Ceará
claudiasousaleitao@yahoo.com.br
Resumo
As políticas culturais no Brasil tendem a se comportar de forma pendular. De um lado, as políticas centralizadoras para a cultura foram marcadas por uma espécie de “dirigismo cultural”, de outro, uma postura defensiva e omissa do Estado no campo cultural. Nesse contexto é que o Governo Lula assume, em 2003, propondo a retomada de uma Política Nacional de Cultura, fundamentada no resgate da dignidade dos brasileiros. O artigo em questão objetiva analisar as políticas culturais do Governo Lula a partir das etapas de construção e consolidação do Sistema Nacional de Cultura (2003-2009).
Palavras-chave: Políticas Públicas. Governo Lula. Sistema Nacional de Cultura. Conferência Nacional de Cultura. Plano Nacional de Cultura.
1 Entre o ‘país real’ e o ‘país ideal’: os direitos culturais na Constituição Brasileira
Nas discussões presentes no VII Congresso Internacional sobre “Políticas de cultura e comunicação: criatividade, diversidade e bem-estar na sociedade da informação” serão necessariamente recorrentes as reflexões sobre os rumos da democracia no século que se inicia. Por outro lado, nas sociedades contemporâneas, marcadas pelos grandes avanços da informação, do conhecimento e das tecnologias, também o conceito originalmente político de democracia „se culturaliza‟, passando a ampliar seus significados na mesma medida em que se ampliam e transformam as necessidades das populações.
Marilena Chauí (2007, p. 46-47) nos adverte que para aceitarmos o desafio da democratização da cultura necessitamos inicialmente de uma nova cultura democrática, pois a democracia tem sido reduzida a um regime político dito “eficaz”, tornando-se mera protetora das liberdades individuais e perdendo a grandeza de seu fundamento: a existência dos contrapoderes sociais, condição necessária para a criação de novos direitos. Por isso, os caminhos para a democracia e a equidade no campo da cultura nos países latino-americanos são
1 Mestre em Sociologia Jurídica pela Universidade de São Paulo, Doutora em Sociologia pela Sorbonne (Paris V), ex Secretária da Cultura do Ceará ( 2003-2006), Professora e pesquisadora do Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará, Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Christus, consultora na área da cultura.
difíceis, especialmente no Brasil, cuja sociedade é marcada pela desigualdade e pelo autoritarismo.
No caso do Brasil, o Plano Nacional de Cultura, recém publicado pelo governo federal, apresenta um diagnóstico desolador sobre a desigualdade entre os brasileiros, especialmente no que se refere ao seu acesso aos bens e serviços culturais. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2007) evidenciam a concentração abissal e a necessidade extrema de investimento neste setor. Conforme pode ser observado a seguir, a população brasileira é acometida por um grave déficit no que se refere ao acesso a bens e serviços culturais: Apenas 13% dos brasileiros freqüentam cinema alguma vez por ano; 92% dos brasileiros nunca freqüentaram museus; 93,4% dos brasileiros jamais freqüentaram alguma exposição de arte; 78% dos brasileiros nunca assistiram a espetáculo de dança, embora 28,8% saiam para dançar; Mais de 90% dos municípios não possuem salas de cinema, teatro, museus e espaços culturais multiuso; O brasileiro lê em média 1,8 livros per capita/ano (contra 2,4 na Colômbia e 7 na França, por exemplo); 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da população; O preço médio do livro de leitura corrente é de R$25,00, elevadíssimo, quando se compara com a renda do brasileiro nas classes C/D/E; Dos cerca de 600 municípios brasileiros que nunca receberam uma biblioteca, 405 ficam no Nordeste, e apenas dois no Sudeste; 82% dos brasileiros não possuem computador em casa, e 70% não tem qualquer acesso à internet (nem no trabalho, nem na escola); 56,7% da população ocupada na área de cultura não têm carteira assinada ou trabalha por conta própria; A média brasileira de despesa mensal com cultura por família é de 4,4% do total de rendimentos, acima da educação (3,5%), não variando em razão da classe social, ocupando a 6ª posição dos gastos mensais da família brasileira.
Se a cultura é um direito humano e fundamental, a expressão “cidadania cultural” nunca experimento um período de tamanha efervescência. Impossível negar que, em seguida
ao crescimento dos debates e da conscientização acerca dos direitos ambientais, os direitos culturais estão em franca positivação. A Constituição Federativa Brasileira comemorou 20 anos de promulgação. Ela foi alcunhada pelos seus constituintes de “Constituição Cidadã”, exatamente por ampliar o espectro de direitos sociais em nosso país. No entanto, seus avanços não repercutiram com a intensidade esperada. Embora presentes em nossa Carta Magna, direitos sociais carecem de suas respectivas garantias, ou seja, faltam-lhes elementos de natureza jurídica, política e social que efetivem sua realização.
Na Constituição Brasileira de 1988 a cultura constitui um espaço de liberdade dos indivíduos, estando associada a atividades vinculadas à criação e à expressão humana. Afirma o texto constitucional: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (Art. 5º, IX da CF/88). Enquanto espaço do permitido, a cultura torna-se, pela sua própria natureza, uma matéria de difícil positivação para grande parte dos nossos juristas. O resultado é que se observa uma tendência a que esses direitos se mantenham restritos às normas programáticas, normas essas sempre carentes de posterior regulamentação, o que explica, mas não justifica a inaplicabilidade dos direitos constitucionalmente adquiridos assim com a ausência de uma real efetivação desses direitos pela sociedade brasileira.
No „país real‟ os direitos culturais continuam, vinte anos depois, em busca de sua positivação. E qualquer análise, mesmo superficial, sobre o papel do Estado brasileiro no combate às desigualdades sociais, acabará por concluir que o Brasil é ainda um país de excluídos. Por isso, os números do IBGE (2007) acerca do acesso ao “fazer” e ao “fruir” cultural constituem um indicador exemplar para medir as injustiças sociais historicamente presentes no país. O mais dramático na ausência de acesso aos bens e serviços culturais é que esta exclusão não é somente de natureza material, mas produz outras exclusões imensuráveis, inibindo no homem sua capacidade de imaginar, criar, conhecer, partilhar, experimentar, inovar e pertencer. Enfim, se falamos em „democracia cultural‟ e de sua função estratégica para a cidadania, o trabalho e a qualidade de vida, ainda percebemos uma presença claudicante do Estado na formulação de políticas públicas voltadas à inclusão. Os pequenos orçamentos destinados historicamente pelo Estado à área cultural, por exemplo, demonstram, por exemplo, o seu desprestígio e invisibilidade.
Essas primeiras reflexões são necessárias e delas podemos extrair as seguintes perguntas: Como garantir a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro? Que princípios regem a normatividade cultural brasileira? A gestão pública da cultura segue as regras gerais de Direito Administrativo ou tem regência específica? A Constituição Federal fornece
elementos para que a historicamente almejada autonomia da cultura seja respeitada e, mais que isso, fomentada pelo Estado brasileiro? Enfim, como garantir a cidadania cultural para os brasileiros?
Para compreendermos a difícil trajetória da positivação dos direitos culturais no Brasil, necessitamos compreender, em um primeiro momento, a histórica vulnerabilidade da institucionalização da cultura no Brasil, pois ela é fruto das fragilidades da própria sociedade civil brasileira. No campo da política, a atenção dada às políticas públicas federais, estaduais e municipais, na área cultural, foi historicamente insignificante. Embora presentes nos palanques dos candidatos ao legislativo ou ao executivo em nosso país, os discursos sobre cultura não se reverteram, ao longo do tempo, em projetos de lei capazes de garantir políticas culturais voltadas à descentralização, inclusão e democratização dos bens e serviços culturais. Se no Brasil já se reconhece a estabilidade de princípios e diretrizes para uma política econômica, o mesmo ainda não ocorreu no âmbito de uma política cultural. No campo científico, o fenômeno também se repete, constatando-se pouca produção acadêmica no setor, assim como lacunas de natureza teórico-metodológica nas pesquisas produzidas, que, por sua vez, contribuíram para a escassa produção de dados necessários à consolidação do setor. No campo artístico, a compreensão acerca dos significados das políticas públicas para a cultura também é incipiente, em função, de um lado, das carências de formação do campo cultural, e, de outro, da inexistência de um sistema nacional de informações culturais, capaz de subsidiar a formulação das próprias políticas.
Vale, enfim, ressaltar que, a ausência de clareza na formulação de diretrizes, que estabeleçam os limites da intervenção do Estado no campo cultural, provocou, em muitos casos, ou um confronto aberto de posições radicalmente antagônicas, levando à paralisia decisória, ou a uma tendência a evitar projetos mais ousados, privilegiando-se um grande número de pequenas ações. O resultado dessa relação se traduz na atuação clientelista e assistencialista das agências de fomento cultural. Clientelista, de um lado, por se limitar a atender, de maneira geralmente passiva, às demandas da clientela própria da área artística em geral; assistencialista, de outro, por tratar a cultura como ação filantrópica, como lenitivo ou mera tentativa de neutralização das nossas mazelas e desigualdades sociais (MICELI, 1984).
Por outro lado, na agenda de desenvolvimento nacional, a cultura foi historicamente concebida de forma unilateral, enquanto “política de Governo”, não tendo sido formulada e pactuada com a sociedade civil, como se espera de uma “política de Estado”. Esse fenômeno vem produzindo inúmeros impactos para o campo cultural, valendo destacar, entre eles, a descontinuidade das políticas e programas culturais e o respectivo descrédito da gestão
pública da cultura. Por último, se o Estado brasileiro foi omisso na sua ação de definição de transversalidades, de institucionalização e regulamentação da cultura, vale constatar que a sociedade civil também passou historicamente ao largo das demandas, intervenções e controles que poderia ter protagonizado.
O grande desafio das políticas públicas de cultura é, portanto, o de ampliar o conceito de cidadania. Nesse sentido, a cidadania cultural teria fundamentalmente duas vocações: afirmar os direitos e deveres dos indivíduos face às suas culturas e às demais culturas; determinar os direitos e deveres de uma comunidade cultural frente às demais comunidades culturais. Assim, só se pode construir uma política cultural quando é garantida a livre expressão de indivíduos e comunidades, assim como os meios para que esses estabeleçam objetivos, elejam valores, definam prioridades, controlando, enfim, os recursos disponíveis para alcançar seus objetivos, a partir de suas crenças e valores.
2 Sobre a construção e os impasses do Sistema Nacional de Cultura-SNC- no Brasil
A proposta de construção do Sistema Nacional de Cultura - SNC não é nova. Do ponto de vista institucional, o primeiro ordenamento que concebe de forma sistêmica as instituições culturais do Estado brasileiro data de 1937 (CALABRE, 2006, p. 13):
A Lei 378 agrupa, sob a égide do Departamento Nacional de Educação, do então Ministério da Educação e Saúde, as instituições „Escolares e Extra-escolares‟ existentes à época - A Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz, o Instituto Oswaldo Cruz, o Observatório Nacional, a Biblioteca Nacional, a Casa de Rui Barbosa e o Museu Histórico Nacional- e as então criadas: Instituto Nacional de Cinema Educativo, Instituto Cayru, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Nacional de Belas-Artes, Comissão do Teatro Nacional e Serviço de Radiodifusão Educativa em que haja a constatação de avanços de grande monta. Mais recentemente, refinou-se o debate no sentido de se saber se o aludido sistema precisa ser construído ou implementado. Falam em “construção” aquelas pessoas que compreendem estar o SNC no ou bem próximo ao marco zero; preferem o termo “implementação” os que enxergam o sistema já presente na Constituição Federal e como fato decorrente da própria mecânica do federalismo cooperativista, adotado por nosso país.
A criação do Conselho Nacional de Cultura (CNC) em 1938 foi certamente decorrente deste processo. No entanto, o CNC só será regulamentado e instalado em 1961. Sua maior missão era a de elaborar „um plano geral de política e programas anuais para sua aplicação‟( Decreto nº 51.063/61). A partir da década de 60, o Conselho Nacional passará a ser denominado Conselho Federal de Cultura (CFC), passando a ter como competência a elaboração do Plano Nacional de Cultura. Na década de 70, o CFC realizou um primeiro encontro sobre o Sistema Nacional de Cultura, abordando importantes discussões sobre os sistemas nacionais de bibliotecas, arquivos e museus.
Na década de 80, com a criação do Ministério da Cultura, é instituído o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), fruto da publicação da Lei Sarney, primeira legislação de incentivo à cultura. Também foi criada a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) para julgamento dos processos a serem apoiados pelo Estado. Esses processos de institucionalização da cultura simbolizam os primeiros movimentos modernizadores do Estado em relação à cultura, além de significarem o início de abertura das entidades governamentais à participação da sociedade civil.
A década de 90 testemunha uma grande desresponsabilização do Estado brasileiro na formulação de políticas públicas para a cultura. As leis federais de incentivo à cultura produzirão a multiplicação de novas leis de incentivo, desta feita, nos âmbitos estaduais e municipais. O resultado é que as políticas liberais que fundamentarão a lógica do „Estado mínimo‟ passarão a transferir para os departamentos de marketing das empresas, as decisões acerca das políticas culturais no país.
A partir de 2003, o Estado brasileiro passa a resgatar o seu papel de formulador de políticas públicas na área da cultura, desta feita, voltando-se às demandas culturais da população brasileira. e compreendendo o papel estratégico da diversidade cultural no cenário nacional e internacional. Por isso, apóia a Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, prestigiando o diálogo intercultural entre as comunidades e povos, oferecendo substrato à criação de políticas afirmativas para as diversas regiões brasileiras, permitindo, enfim, minorar as velhas distinções hierárquicas entre culturas eruditas e populares, brancas e negras, rurais e urbanas etc. As políticas de fomento ao patrimônio imaterial, às culturas tradicionais populares, vêm exemplificar um novo olhar do Estado sobre a cultura, permitindo um reposicionamento das culturas populares diante da indústria cultural.
Em um mundo globalizado, a lógica do mercado produzido pelas indústrias culturais é muitas vezes nefasta, pois produz concentração de riqueza e de consumo de bens e serviços culturais, inviabilizando o protagonismo cultural de milhões de brasileiros. O Brasil, ao exemplo de outros países em desenvolvimento, tornou-se, especialmente nas últimas décadas, um mercado consumidor de bens culturais, assim como de tecnologias produzidas pelos países considerados desenvolvidos. A expansão econômica e da mídia propiciada pelas indústrias culturais, todos sabemos, não beneficia eqüitativamente a todos os países nem regiões. A América Latina, por exemplo, não consegue se converter numa economia mundial de escala, com capacidade exportadora. O resultado é que a assimetria da globalização das indústrias culturais, além de gerar desigualdades econômicas, também origina desequilíbrios históricos no acesso á comunicação, à informação e ao entretenimento. Ao mesmo tempo, a
hegemonia das indústrias culturais proprietárias de redes de telecomunicações, editoras ou dos canais de televisão, será especialmente nefasta para os países periféricos, contribuindo para a alienação dos indivíduos que consumirão cada vez mais produtos culturais de má qualidade.
Diante desse quadro, a bandeira de construção e de consolidação do SNC se torna de mais a mais oportuna, pois o Sistema nada mais é do que uma importante estratégia de relocalização da cultura dentro do próprio governo federal. Por isso, o SNC, enquanto produto e processo de institucionalização da cultura, tornou-se a grande bandeira do governo Lula. Por isso, o Brasil retoma o desafio da construção de um Plano Nacional de Cultura, não mais a partir da retórica, antes proposta pelos governos militares, da construção da unidade ou da segurança nacional, mas como um instrumento privilegiado de transformação e inclusão social.
Ao mesmo tempo, em suas novas diretrizes, o governo federal passa a valorizar e a enfatizar o Plano e suas etapas de construção, enquanto um grande pacto da sociedade brasileira em torno das questões culturais, constituídos de estratégias e diretrizes para a execução de políticas públicas para o setor. Para tanto, realiza amplo diagnóstico sobre o campo cultural brasileiro, apoiando a realização de conferências municipais e estaduais que culminam na Conferência Nacional de Cultura, em 2005, a qual simboliza a coroação de todas essas etapas de sensibilização do campo cultural brasileiro para a necessidade de formulação de uma política cultural verdadeiramente pública, ou seja, representativa das diversas demandas culturais do país. O Plano Nacional de Cultura (2008-2018) oriundo desse grande processo de oitiva e participação popular, constitui instância articuladora da política cultural brasileira, na medida em que pactua linhas de ação coerentes com a construção federativa de uma política pública de cultura.
Vale ressaltar que as conferências nacional, estaduais, municipais e intermunicipais de cultura representam um processo compartilhado e contínuo, necessário para a eterna orientação e reorientação das políticas culturais, capaz de definir diretrizes, conceitos, desafios, estratégias e programas que, por sua vez, constituirão o Plano Nacional de Cultura. Graças às conferências, desenvolvem-se tecnologias de compartilhamento e construção conjuntas de políticas culturais. Graças ao Plano, definem-se responsabilidades, projetam-se metas, acompanham-se programas, avaliam-se resultados. Esse documento constitui o pacto exemplar da União para com os demais entes federados, no âmbito da formulação de uma política pública de cultura para os brasileiros.
A partir de 2008 e 2009, desta feita sob a liderança do ministro Juca Ferreira, novas etapas para a consolidação do SNC continuam se efetivando, no sentido de aprofundar a arquitetura político-institucional do Sistema Nacional de Cultura.
3 A construção do SNC a partir do relato de um gestor estadual de cultura
Quando assumi em janeiro de 2003 a gestão da Secretaria da Cultura do Ceará, compreendi muito rapidamente os impactos das políticas neoliberais no campo cultural. Encontrei uma secretaria esvaziada de profissionais da área cultural, com baixíssimo orçamento e com pouquíssima atuação estadual. Como o próprio Ministério, nós, da Secretaria da Cultura nos sentíamos distantes do “fazer cultural” das populações dos diversos municípios cearenses, assim como dos bairros mais pobres da capital, historicamente destituídos de equipamentos culturais, e praticamente excluídos de qualquer acesso a bens e serviços culturais. Percebi, ainda, a partir do nosso isolamento, que o mesmo também ocorria nos municípios e na própria União, isolamento que impedia a comunicação, a cooperação e o compartilhamento de políticas públicas, de programas e de projetos comuns entre os entes federados.
Decidi, então, realizar, logo em março de 2003, um primeiro grande encontro, que fosse capaz de reunir os diversos segmentos culturais, gestores municipais, artistas, produtores e representantes da sociedade civil para que juntos esboçássemos diagnósticos, definíssemos desafios, pactuássemos princípios, valores e diretrizes para a formulação e posterior implementação de políticas públicas para a cultura no estado. O encontro foi estruturado a partir dos seguintes temas: políticas públicas e gestão, o patrimônio cultural, a economia da cultura, a legislação cultural, e a municipalização da cultura. Cito aqui os desafios que foram priorizados no “Seminário Cultura XXI”:
1. Afirmar a cultura como fator de inclusão social e de desenvolvimento local e regional, promovendo a cidadania cultural e a auto-estima do cearense;
2. Favorecer a transversalidade da cultura nas ações das secretarias do estado e municípios, identificando, fomentando e integrando as vocações culturais regionais;
3. Promover o empreendedorismo cultural e o desenvolvimento econômico na área da cultura;
4. Implantar gestão estratégica, aberta a parcerias e focada na qualidade de seus produtos e serviços;
Na verdade, não sabíamos, naquele momento, que estávamos realizando uma “conferência de cultura”, certamente a primeira conferência estadual de cultura no Governo Lula. O Ministério da Cultura – Minc - também ainda não havia ainda começado a definir suas estratégias para a realização das conferências, nem havia estabelecido as etapas para a construção do Plano Nacional de Cultura. No entanto, o que fizemos no Ceará, de forma
empírica e instintiva, foi uma conferência de cultura, cujos resultados constituíram as bases do nosso Plano Estadual da Cultura, publicado no mesmo ano.
Lembro que em 2004, no município do Crato, no Cariri cearense, com a presença do diretor de Museus do MinC, José Nascimento Jr., realizávamos o primeiro encontro para a construção do Sistema Nacional de Museus, ao mesmo tempo em que iniciávamos a estruturação do Sistema Estadual de Museus no Ceará. Naquele momento, Brasília e o Ceará discutiram de forma parceira a importância dos Sistemas de Equipamentos Culturais para a consolidação do Sistema Nacional de Cultura, uma dos projetos institucionais mais audaciosos do governo Lula. Pactuamos em 2003, na região do Cariri, que um sistema de museus deveria promover a articulação entre os museus existentes, encaminhar reflexões sobre os papéis e funções dos museus junto às comunidades, fomentar a realização de cadastros, realizar programas de capacitação, enfim, contribuir para a melhoria dos recursos humanos e das práticas de gestão com o objetivo de maximizar a qualidade dos serviços por eles oferecidos. Discutíamos, ainda, nesse primeiro encontro, o papel educador do museu, especialmente no que se refere à educação patrimonial. Para isso, as demais linguagens artísticas, como o teatro, a música e a literatura possuem um papel estratégico na ampliação da sinergia do museu, não mais um lugar em que se penetra em um “túnel do tempo” mas um espaço multidisciplinar de diálogo com o presente e de invenção do futuro (RAMOS, 2004, p. 39).
Acompanhei e compartilhei, entre 2003 e 2006, das etapas de construção do Plano Nacional de Cultura. Estive com o Ministério em 2005, momento da realização da primeira Conferência Nacional de Cultura. Esta Conferência representou, para nós, gestores estaduais de cultura, mais do que uma primeira grande ação de pactuação dos entes federados em torno da construção de um modelo de gestão de políticas culturais para o país. O que mais me animava naquele momento, assim como aos protagonistas do campo cultural no Ceará, era a sensação de estarmos sendo ouvidos, de inaugurarmos um novo tempo de construção de novas solidariedades, de valorização dos artistas anônimos, de criação de uma nova cultura de discussão e compartilhamento das políticas culturais. Tenho certeza que esse resgate da auto-estima foi a primeira grande contribuição do SNC ao povo brasileiro e ouso dizer que, esse fato, por si só, já justificaria sua existência.
Os caminhos se fazem a partir dos passos do caminhante. Compreendi isto mais tarde, revendo e relendo o percurso do SNC „de trás para frente‟. O Sistema Nacional de Cultura se pôs em marcha discretamente, como um processo tímido de realizações e transformações, como um passo a passo quase despretensioso, menos direcionado aos produtos do que aos
processos, menos preocupado com o êxito da chegada e mais atento às pequenas conquistas da travessia. Penso que os seminários “Cultura para Todos”, a instituição das Câmaras Setoriais, a aprovação da emenda constitucional 48, determinando a realização do Plano Plurianual do Plano Nacional de Cultura, a instituição do Sistema Nacional de Cultura, a partir da PEC 416/2005, assim como o primeiro levantamento estatístico do Sistema de Informações e Indicadores Culturais são exemplos vitoriosos de pequenos passos que abriram grandes caminhos e que construíram sólidas pontes entre o governo e a sociedade civil brasileira no campo da cultura, no governo Lula.
Na condição de primeiro estado brasileiro a aderir ao Sistema Nacional de Cultura, em março de 2004, o Ceará protagonizou uma ampla ação institucional de articulação e pactuação entre os municípios, o estado e a união. Neste sentido, desenvolvemos um eixo de atuação dentro do projeto que permitiu a adoção de estratégias que viabilizaram as condições necessárias para criar uma ambiência propícia em cada município à estruturação dos sistemas municipais de cultura. O primeiro passo foi criar uma atmosfera capaz de envolver os poderes executivo, legislativo e judiciário dos municípios cearenses, nesse processo. Foi aí que nasceu a iniciativa de realizar visitas oficiais nos 184 municípios com a própria titular da pasta da Cultura, em sessões públicas nas câmaras municipais, visando sensibilizar as lideranças locais para a necessidade da criação de um sistema público de cultura no âmbito municipal em cooperação com os sistemas estadual e federal.
Desenvolvemos, ainda, uma metodologia de trabalho, aplicada em todas as câmaras municipais, para orientar os vereadores, representantes do poder judiciário, prefeitos e gestores culturais, sobre os mecanismos de legalização e legitimação desses sistemas (criação de secretarias, conferências, conselhos, fundos e planos municipais). As sessões eram abertas a partir de uma exposição sobre o tema do Federalismo Cultural e os significados do SNC para a vida dos municípios; em seguida, apresentava-se ao prefeito e vereadores o protocolo de adesão ao Sistema Nacional de Cultura, seguido da distribuição do material informativo (cartilhas explicativas, modelos de documentos, etc.) e, por último, realizava-se um debate com os presentes sobre os próximos passos relativos àquela sessão. O ineditismo e a singularidade desta ação não só alterou a rotina das câmaras, mas também a das cidades, mobilizando os diversos atores sociais locais: políticos, artistas, gestores, religiosos, líderes comunitários e estudantes em torno da reflexão e discussão da importância da gestão da cultura como instrumento de desenvolvimento sustentável, da necessidade da participação e apoio popular no estímulo as políticas em favor do setor cultural local.
Na verdade, mais do que a mera assinatura dos protocolos, aquelas visitas inauguraram um novo relacionamento dos poderes executivo, legislativo e judiciário com os artistas e produtores culturais locais. Pela primeira vez, discutia-se cultura enquanto estratégia de desenvolvimento municipal, falava-se na necessidade de autonomia de recursos, da importância de se construir expertises, de se angariar parcerias, de se pensar esse desenvolvimento de forma menos individual e mais regional. O prédio da Câmara Municipal foi o lugar natural das sessões, mas em algumas cidades aconteceram extraordinariamente em outros espaços (igrejas, quadras esportivas, terreiros, escolas) para acomodar o público que normalmente superava as expectativas de participação, seja na quantidade de pessoas presentes (ao todo, estiveram presentes, a essas audiências, mais de vinte mil pessoas!) seja pelas considerações e questionamentos propostos nos debates pela platéia.
De início, acentuamos a importância da adesão formal e protocolar ao mesmo; em seguida, chegamos a desvalorizar essa adesão, considerando-a um elemento menor no processo civilizatório de construção de uma cidadania cultural nos municípios cearenses. Por último, revimos nossas posições quanto à importância do rito de adesão ao SNC, compreendendo sua forte carga simbólica e o seu caráter fundador de novas sociabilidades e de um novo desenvolvimento para o campo cultural e para a sociedade civil. Todas essas impressões foram fruto de um longo “ir e vir”, em que testamos no campo as hipóteses que havíamos construído em nossos gabinetes e, em muitos momentos, ficamos desconcertados com a fragilidade das nossas certezas e convicções.
Após o processo de articulação com os municípios para a adesão ao Sistema Nacional de Cultura e realização das conferências municipais de cultura, percebemos que necessitávamos apoiá-los na elaboração de seus planos municipais. Essa tarefa era necessária e especialmente difícil, já que há uma enorme lacuna nos processos de formação na área de gestão pública em todo país. Mergulhamos em mais um desafio: realizar uma formação pioneira para subsidiar os municípios na realização de seus planos municipais de cultura, a partir do programa de capacitação da Secretaria. No período de abril a julho de 2006, desenvolveu-se o planejamento, grupo de estudos, metodologia e material didático para uma capacitação de 156 h/a distribuídas em aulas, supervisão de campo e orientação na elaboração dos planos. Setenta municípios foram selecionados, pois atendiam aos requisitos do Ministério no processo de estruturação dos seus sistemas como ter Secretaria, Fundação ou departamento de Cultura e ter realizado sua conferência municipal de cultura. As aulas aconteceram em finais de semanas alternados e, apesar da distância da maioria dos municípios em relação a capital, do pouco tempo disponível dos participantes e, ainda, do período
eleitoral, que inviabilizou a participação de alguns gestores selecionados, o curso foi considerado um sucesso, cujo resultado materializou-se na elaboração e entrega do plano de cultura de 50 municípios, um feito inédito na formação em gestão cultural no país.
Chegamos ao final de 2006 com um cenário bastante favorável à institucionalização da cultura no Ceará: a criação de 94 órgãos municipais de cultura. No entanto, em inúmeros municípios aquela audiência proporcionaria não somente a criação de secretarias, mas a colheita de outros frutos inesperados que nos faziam despertar para a vitalidade e a força simbólica daquela ação de institucionalização da cultura nos destinos daqueles municípios. Até hoje o Ceará é o único estado brasileiro cujos 184 municípios aderiram ao Sistema Nacional de Cultura.
Cunha Filho (2009) afirma que mais importante do que decretar a existência de um instituto jurídico ou de um direito é garantir-lhe sua efetivação. Nesse caso, um Sistema vale menos pela sua estrutura do que pelo que produz ao longo de sua gestação. Portanto, para consolidar o SNC é necessário formular políticas e criar programas capazes de fomentar os subsistemas culturais. Afinal um Sistema não passa de uma abstração jurídica, caso não seja percebido a partir das ações de seus subsistemas.
Quando enviei, no final de minha gestão, à Assembléia Legislativa, a Lei nº 13.81, de 16 de agosto de 2006, que instituía o Sistema Estadual de Cultura e o Decreto nº 28.441, de 30 de outubro de 2006, que a regulamentava, sabia que estava dando materialidade e formalidade a um processo de efetivação dos direitos culturais aos cearenses. No entanto, também tínha consciência que aquela legislação era o corolário de um processo que havia sido construído lentamente, a partir de ações aparentemente esparsas, desde 2003 e que, somente muito mais tarde, tomaria um significado maior. Havíamos, sem nos apercebermos disso, juntado peças que compunham um „quebra-cabeças‟, ao qual poderíamos chamar de Sistema Estadual de Cultura. Mas, compreendíamos que o mais valioso não era a observação da imagem construída pelo “quebra-cabeças‟, mas sim os processos vividos para conseguir montá-lo.
Aprendi muito o longo dos quatro anos da minha gestão frente à Secretaria da Cultura do Ceará. Compreendi que a cidadania cultural é menos fruto de garantias jurídicas do que de uma conquista política diuturna, capaz de mobilizar desejos e perseguir utopias. Percebi que, no campo cultural, são os meios que justificam os fins, ou seja, definir a arquitetura do Sistema Nacional de Cultura ou dos seus modos de operação era menos importante do que provar d os frutos colhidos durante as etapas que o precederam. A maior aprendizagem sobre
a construção do SNC foi e continua a ser compreensão de sua “ação pedagógica”, das éticas e sociabilidades dele decorrentes.
Penso que nossa experiência de gestão é valiosa para compreendermos o presente e o futuro do SNC. Atiramos no que vimos, mas “acertamos” em muitos casos no que não tínhamos visto ou compreendido. Sistemas implicam em valores, em convicções, em visões de mundo. Nos tempos atuais, inúmeros sistemas sociais vêm perdendo seus valores, suas crenças, seus referenciais. Penso que o mais significativo em um Sistema de Cultura não será necessariamente sua arquitetura, mas sua ética. A aprovação do Sistema Estadual de Cultura no Ceará era uma condição necessária, mas certamente não suficiente para a construção cotidiana desses valores inegociáveis (o pluralismo cultural, a inclusão social, a participação democrática...). Ao longo de nossa ação, construímos, a partir de pequenas ações, esses valores com as diversas regiões cearenses, em nome do SNC. Essa representa a nossa maior vitória. Por isso, o mais desafiador para um gestor cultural é sua consciência de que os valores do SNC jamais estarão na sua arquitetura. Por isso, o nosso maior papel é o de criar estratégias de transmissão de valores para que, apesar da fragilidade dos processos de gestão e da falta de continuidade de políticas públicas, possamos cultivar valores culturais em nosso país.
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