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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Texto da professora Ana Fernandes no Seminário sobre Cultura e Cidade

Ana Fernandes
Professora da Faculdade de Arquitetura/UFBa e Conselheira do Conselho
Estadual de Cultura.

Em primeiro lugar eu gostaria muito de agradecer o convite a todos os promotores
desse evento e dizer que sempre me sinto muito honrada em participar desse tipo
de discussão e em poder compartilhar com pessoas tão eméritas o debate sobre
as cidades, sobre a cultura.
Começaria dizendo que a relação entre cidade e cultura é uma relação de
longuíssima temporalidade e que, portanto, tratar dessa questão em dez minutos
exige, obviamente, um recorte para que ela comece a ser trabalhada. O tema da
mesa é A cidade como fenômeno cultural na contemporaneidade e uma opção é
buscar pensar na cidade brasileira hoje, mais particularmente na Salvador de hoje,
como essa relação entre cidade e cultura vem sendo aqui construída.
Logo que o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, foi eleito, ele
começou a apregoar o espetáculo do crescimento e durante algum tempo isso foi
motivo de anedota. O que se assiste desde o ano passado, 2007, é um processo
de crescimento econômico no Brasil, e não só no Brasil1. Esse momento de
crescimento é também um momento de crise, entendendo crise como processo de
destruição do existente e de criação do novo. A crise do crescimento, portanto,
nos abre a mudança e a transformação como perspectivas ou, esperançosamente,
a possibilidade de conquista de melhores condições sociais, culturais, urbanas e
urbanísticas.
Assim, vemos, por todo lado, um processo de construção e de reconstrução
extremamente acelerado das cidades, seja pelo lado físico, concreto, palpável,
seja pela interface imagética e digital. Mas esse processo nem sempre nos traz
1 O presente seminário aconteceu em agosto de 2008, momento ao qual imediatamente se seguiu
a abertura da enorme crise financeira internacional, que avassalou os mercados e as atividades
econômicas de modo geral.
uma perspectiva agradável, do ponto de vista do sentido em que as cidades estão
se transformando hoje, particularmente em termos da cultura.
E para particularizar a abordagem dessa relação cultura-cidade, vou privilegiar um
campo da produção cultural da cidade, minha área de trabalho, que é a arquitetura
e o urbanismo – campo nem sempre, aliás, reconhecido como esfera de produção
de cultura, relegado que foi à esfera da produção bruta de mercadorias
imobiliárias e de obras questionáveis de infra-estrutura.
De início, é importante reincorporar a idéia da cidade como obra, formulação de
Henri Lefebvre ainda nos anos 60, quando buscava contrapor, à produção de
forma majoritária e hegemônica da cidade como valor de troca, a cidade como
valor de uso. Isso significa atentar para os processos de produção que estão além
dos valores puramente mercantis, reduzidos a um equivalente geral e
intercambiável, ou seja, para os processos simbólicos, de sociabilidade, de
criação, de urbanidade.
Entender a cidade como obra traz, portanto, como possibilidade, o entendimento
dos seus complexos processos de significação, parte essencial de sua produção
material, ambos respostas às necessidades da vida coletiva. A produção de
objetos na cidade2, portanto, estaria duplamente e indissociavelmente vinculada a
duas esferas de inteligibilidade: material e simbólica. A cidade entendida (e
produzida) como obra traria então a possibilidade de prevalência da necessidade
e da liberdade do uso sobre a circulação e a realização da mercadoria.
Pode-se interrogar então como vem se dando a produção de objetos urbanos, da
arquitetura e do urbanismo na cidade contemporânea, e mais particularmente em
Salvador.
A arquitetura, é evidente, tem uma tradição de ser pensada enquanto objeto
cultural na cidade. Grande parte de sua história é construída nessa perspectiva.
No entanto, a crise de crescimento atual parece estar colocando em cheque, em
nossa cidade, o conjunto da produção de objetos, pela reafirmação de mão única
2 Para Milton Santos, o espaço pode ser caracterizado como um sistema de objetos e um sistema
de ações.
do mercado e uma pífia ou simplória regulação pública dessa produção. O que
vem gerando, de forma crescente, contínua e cruel, um processo de
despossessão de valor simbólico – acentuação acelerada da insignificância e/ou
do exibicionismo – e um processo de despossessão de valor técnico – tecnologias
utilizadas de forma conservadora, sem exploração das possibilidades que elas
carregam – ao lado de uma produção acelerada de objetos e de intervenções de
dimensões cada vez maiores na cidade.
Então, o entendimento da cidade como obra, ancorada no valor de uso, deveria
estar calcada em uma capacidade de problematização da sensibilidade
contemporânea, em sua complexidade e multiplicidade, adversidades e abertura à
criação. No entanto, nossas cidades hoje estão prenhes de um processo de
produção de objetos que é voraz, desigual, contínuo, recorrente.
Em Salvador, a crise da produção contemporânea de objetos urbanos, inclusive a
arquitetura e o urbanismo, tem demonstrado, a meu ver, muito mais sua faceta
conservadora e oportunista, do que a abertura a novos processos de (re)criação
da vida coletiva. Os programas têm sido repetitivos; as propostas, formais,
enfadonhas; o acesso, restrito; a técnica, maquiada.
Podem ser apontadas três âncoras principais desse processo: a cultura da
privatização, a cultura do desperdício e a cultura da ignorância e do imediatismo.
Em termos de cultura de privatização, é evidente o momento de crise do espaço
público em que vivemos, onde, recorrentemente, tudo que é público, tudo que é
coletivo, é entendido como algo menor, como algo desimportante, como algo
perigoso, que ameaça e que não responde às ânsias de crescimento econômico,
de geração de empregos e de acúmulo e desfrute de riqueza. Nesse sentido estáse
produzindo, sem sombra de dúvida, uma anti-cidade, onde os condomínios
fechados têm cada vez mais espaço, têm cada vez mais legitimidade cultural,
social, econômica, política e jurídica. Particularmente no campo jurídico, vale
ressaltar que, nesse momento, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de
lei chamado de Lei de Responsabilidade Territorial. Pela constituição atual, toda
área pública é de livre acesso e é isso que garante, ou deveria garantir, que ruas,
praças e praias estejam acessíveis a todos. Esse Projeto de Lei é bastante
polêmico pois, ao mesmo tempo em que tenta garantir que as áreas públicas dos
loteamentos (muitos transformados posteriormente em condomínios) fiquem
acessíveis a todos, fora dos muros, ele também regulamenta a existência de áreas
fechadas ao acesso público, situação que, a depender de sua dimensão, pode
gerar transtornos enormes de fluidez e mobilidade no tecido urbano, além de
legitimar a construção de cidadelas como solução urbanística para a cidade
contemporânea. Salvador, nesse sentido, infelizmente se antecipou a esse projeto
de lei, na medida em que foi aprovado, pela atual gestão municipal, que
empreendimentos de até cinco hectares, independentemente do número de
unidades que os integrem, não precisam mais fazer doação de áreas públicas na
cidade3. Essa legitimação aciona várias esferas e, inclusive, existem propostas
vindas de parte do próprio movimento social hoje, de que os loteamentos fechados
passem a compor também alternativas para a habitação de interesse social.
A questão principal é que a soma ou a justaposição de espaços privados não faz
uma cidade. Essa é uma crise e um drama do crescimento atual, na medida em
que se está abandonando a idéia mais simples e mais corriqueira de cidade: as
relações de troca, de convivência, do encontro do diferente, do coletivo e da
possibilidade de solidariedade e de conflitualidade no espaço urbano.
Em termos da cultura do desperdício, já se está acostumado a que os objetos –
computador, geladeira, fogão, máquina fotográfica – devam ser trocados a cada
três ou quatro anos. Nada mais dura muito. Tudo tem que ser recorrentemente
trocado, abandonado, e isso está acontecendo também com o espaço da cidade.
A produção infindável de espaço novo, característica de certas formas de
crescimento, faz necessariamente sucumbir áreas inteiras da cidade. Quanto mais
se constrói na vertente atlântica de expansão de Salvador – Iguatemi, Paralela,
Orla, Lauro de Freitas –, mais se esvaziam, na mesma medida, outras áreas da
cidade. Assim, assistimos à repetição e aceleração de processos que já
esvaziaram áreas centrais como o Comércio aqui em Salvador. Simplesmente
3 Artigo 347 da lei 7.400/2008, ou lei do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
porque não há demanda que seja capaz de dar conta dessa quantidade de novos
objetos que vêm sendo construídos na cidade. Portanto, a produção se pauta hoje
por uma população inexistente, o que, muito em breve, pode fazer com que os
espaços novos que pontuam nossos horizontes já sejam, eles mesmos, espaços
fantasmas na cidade. Isso pode ser visto em várias cidades americanas, com a
última crise, a da bolha imobiliária, que devastou áreas urbanas enormes. Então,
ao lado de áreas cada vez mais privadas, de áreas de circulação extremamente
restritas e controladas, nós vamos ter também áreas vazias em nossas cidades.
Por fim, ignorância e imediatismo, derivadas de uma cultura administrativa e de
uma cultura política, reduzida a uma dimensão meramente eleitoral, geram, em
nome de uma pretensa governabilidade, um processo de acordos e de decisões –
particularmente no que se refere a grandes investimentos na cidade – que, em
grande parte, abdica da complexidade da vida urbana e de suas várias instâncias
de urbanidade. Isso tem gerado um empobrecimento avassalador da cultura
técnica e da produção dos objetos, o que pode ser visto com muita facilidade nas
intervenções que vêm sendo feitas sequenciadamente em nossa cidade. O que
são os projetos da Via Expressa, da cobertura de rios, das barracas de praia, dos
novos empreendimentos imobiliários?
Essa constatação pode mesmo englobar as várias formas de manifestação da
cultura, desde a produção da cerâmica de Maragojipinho – hoje bastante
atordoada pela maneira como ela passa a ser inserida no mercado turístico – até a
produção de edifícios, a produção de espaço público, a produção de
equipamentos coletivos, que passam a ser regidos por uma lógica corporativa e
eleitoreira, onde o papel do público em grande parte de desfaz, desprezando as
possibilidades de construção material e simbólica de outras formas de vida
coletiva.
Os processos de constituição e de amadurecimento da sociedade civil são longos
e o papel da crítica é fundamental nesse caminho. As possibilidades de ação são
muito maiores e instigantes, e elas são reais, essas possibilidades, naquilo que as
cidades nos trazem enquanto vida coletiva e enquanto criação coletiva da vida

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