Diversidade - Jurema Machado
No final de 2009, vão se completar cinco anos da aprovação, pela Conferência Geral da UNESCO, da Convenção para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. O que teria levado à construção desse instrumento, que colocou lado a lado um vasto espectro de países, díspares não apenas culturalmente, como também econômica e politicamente, parece ter sido a compreensão de que o respeito e a promoção da diversidade se apresentam como a única agenda possível para os Estados-nação, cada vez mais colocados em cheque por sociedades multi-étnicas e multi-culturais.
Esse documento normativo de caráter vinculante, que cria compromissos para os países signatários, entrou rapidamente em vigor, menos de um ano depois da sua aprovação no plenário da UNESCO. A Convenção parte do principio de que a diversidade é um patrimônio comum da humanidade; defende que bens e serviços culturais são portadores de valor e sentido, portanto merecem tratamento diferenciado e que os países são soberanos para definir mecanismos para protegê-los e promovê-los. A tais direitos devem corresponder obrigações de igual calibre, que significam não apenas respeitar os mesmos direitos dos demais paises, assim como reproduzir políticas coerentes com os princípios da diversidade internamente aos seus territórios.
Proteger e promover a diversidade, sob a ótica da busca de redução de assimetrias na circulação e acesso aos bens e serviços culturais, traduz-se na legitimação de políticas como o apoio financeiro estatal à produção e circulação desses bens; à geração e difusão de conteúdo local e, se considerado necessário, restrições ao capital estrangeiro em setores tidos como estratégicos. Sob a ótica da diversidade como um direito, inalienável e inseparável dos direitos humanos fundamentais, abre-se para um leque de políticas sociais que vão além muito do campo da Cultura, mas mesclam-se sobretudo com as políticas para a educação e para o desenvolvimento humano e social.
Como a Convenção criou um conjunto de mecanismos por meio dos quais se pretende promover e aferir sua efetividade – participação de sociedade civil, apresentação de relatórios quadrienais por pais, Comitê Intergovernamental e Conferência das Partes, mecanismos de solução de controvérsias, além de um fundo de financiamento de programas e projetos - a implantação desses foi a primeira tarefa da UNESCO pós-entrada em vigor do instrumento. Todos transcorrem dentro do previsto, mas o tempo ainda é curto para se medir efeitos que possam ser creditados à Convenção.
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A complexidade e as incessantes transformações do mercado internacional de bens e serviços culturais, associadas à ausência de indicadores precisos, especialmente quanto aos serviços, não permitem ainda formular qualquer hipótese sobre os impactos da Convenção nesse campo. Mesmo que tenham existido, sua interdependência de um conjunto complexo de variáveis dificilmente autorizará estabelecer relação direta de causa e efeito com a vigência do instrumento. Mais provável é que ele continue sendo uma referência ética que inspira e dá suporte aos países para fortalecer sua produção cultural e adotar medidas compatíveis nas relações comerciais que envolvam esses bens. No entanto, a diversidade assumida como direito e as suas relações com os demais campos do desenvolvimento humano e social vem sendo objeto de uma produção crescente de novas políticas, programas e ações, tanto internamente à UNESCO, quanto aos países.
A UNESCO tem na Convenção de 2005 uma espécie de documento-síntese da sua política cultural. Trata-se de uma consolidação de princípios gerais, que não invalidam, ao contrário, reforçam e dão um sentido comum aos demais instrumentos, em especial à Convenção do Patrimônio Mundial (1972) e à da Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003). Mas é nos programas inter-setoriais que o tema da diversidade se faz representar de forma mais palpável. Alguns exemplos da ação da UNESCO no Brasil serão uteis para a compreensão das vastas possibilidades desse campo.
O primeiro deles é o do Diálogo Intercultural e a Cultura de Paz, um conjunto de programas que permeia o mandato da UNESCO nas áreas de Educação, Cultura, Comunicação, Ciências e Desenvolvimento Social. Componente-chave da construção de civilizações e culturas, as religiões têm papel destacado nesse contexto. A Convenção de 2005 reconhece o direito à diversidade cultural como sendo também o direito de indivíduos e comunidades à adoção de valores espirituais. Exemplo claro da relação entre diversidade e valores espirituais são as freqüentes situações em que comunidades tradicionais interagem com a fluidez e a volatilidade dos padrões urbanos. Nessas situações, a religiosidade frequentemente figura como um elemento identitário expressivo e contribui para a preservação de outras expressões que constituem o patrimônio imaterial desses grupos, como os saberes, práticas, ritos, celebrações e até mesmo a diversidade lingüística.
Em um país de grande diversidade de sistemas religiosos e míticos, o ensino religioso é um tema complexo e cada vez mais presente na agenda da cultura e da educação. Debatê-lo sob a perspectiva do estímulo ao diálogo inter-religioso para a cultura de paz se justifica, tanto pelo crescente movimento de reivindicação dos direitos humanos e culturais, quanto pela gradual expansão de credos de orientação fundamentalista no país. Como tem sido constatado por pesquisadores e até pela mídia, alguns destes credos tendem a estigmatizar e marginalizar
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manifestações espirituais tradicionais (de matriz africana e indígena, sobretudo) e muitas vezes o fazem por meio de aparatos tecnológicos e institucionais bastante sofisticados.
O ensino religioso no Brasil é previsto na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996). Ainda que facultativo, pode, segundo esses instrumentos, ser integrado ao horário normal das escolas públicas, desde que regulamentado pelos órgãos competentes do poder executivo na esfera estadual. Embora o Artigo 33 da Lei 9394/1996 mencione o “respeito à diversidade cultural religiosa, vedadas quaisquer formas de proselitismo”, presume-se que não seja tão simples pensar em religião dissociada de alguma forma de proselitismo. De um modo geral, as noções presentes na condição da profissão de fé e da conversão são de ordem subjetiva e acabam resvalando no “proselitismo”. Um caso de interpretação da lei fundada na eliminação do proselitismo é a regulamentação do Ensino Religioso no estado de São Paulo, instituída em 2002. A linha adotada identifica a disciplina com conteúdos de “história das religiões”, o que leva, entre outras questões, à consideração de que educadores aptos a ministrarem tais conteúdos seriam oriundos das áreas de Ciências Sociais, História e Filosofia. Em sentido diametralmente oposto, a legislação que regulamenta o Ensino Religioso no Estado do Rio de Janeiro implicou na adoção de um modelo de caráter confessional. A despeito de questionamentos freqüentes por setores da sociedade descontentes com a instituição da difusão do criacionismo nas escolas públicas daquele estado, a lei se mantém desde 2001.
Está sendo levantado pela UNESCO no Brasil um quadro geral sobre o tratamento do ensino religioso no país, incluindo a regulamentação criada pelos Estados e os conteúdos dos livros didáticos produzidos pelas maiores editoras do setor. Ao analisar esse material à luz da Convenção da Diversidade Cultural (2005), da Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino(1960) e da Declaração universal de bioética e direitos Humanos (2005), espera-se oferecer insumos relevantes para que o ensino religioso seja tratado de forma mais compatível com os valores da diversidade.
Outro largo caminho a ser explorado é o da implementação da Lei 10.639/2003, um relevante instrumento disponível para a promoção da diversidade étnico-racial na educação. A Lei torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira no ensino fundamental e médio, tanto nas escolas oficiais, quanto particulares. Esclarece que os conteúdos ministrados devem resgatar “a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.”e estar presentes em todo o currículo, com ênfase nas áreas de Educação Artística, Literatura e História. Em que pese a vasta produção acadêmica acerca dos conteúdos focalizados pela Lei, a tradução dessa produção em materiais que possam chegar à escola está longe de ser
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uma realidade e não é tarefa simples. Antes mesmo dos conteúdos, será preciso definir critérios que favoreçam a sua inserção de forma transversal às diversas disciplinas e ambientes formadores e, sobretudo, eleger uma abordagem que não contribua para engrossar o desgastado caldo das visões que remetem a contribuição dos povos africanos ao exótico, ao folclórico e, quando muito, ao romântico. Naturalmente que o maior peso desse desafio estará na preparação dos professores, não só para a assimilação de novas informações e métodos, mas também para a desconstrução, em muitos casos, de visões social e culturalmente adquiridas sobre o tema. Não se pode esperar que esse seja um tema neutro nas escolas, como seria um conteúdo tradicional de história ou cultura, pelas fortes associações que serão facilmente estabelecidas com um presente marcado por um formato de desigualdade social da qual o componente racial é indissociável.
Outra frente de trabalho fortemente valorizada pela UNESCO nos últimos anos e que, mais uma vez, aproxima as políticas da promoção da diversidade cultural das políticas de educação, é a valorização da diversidade lingüística. Em um país educado para acreditar-se monolíngüe, multilinguismo pode soar estranho como política pública. Ocorre que a idéia de que aqui se fala apenas uma língua – o português – é mais uma construção histórica, fortemente contestada pelos lingüistas, que afirmam que no Brasil de hoje são falados por volta de 210 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones), as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones), e as comunidades surdas do Brasil ainda duas línguas, a Língua Brasileira de Sinais - Libras - e a língua de sinais Urubu-Kaapór. Somos, portanto, um país de muitas línguas - plurilíngüe - como a maioria dos países do mundo. Em 94% dos países do mundo são faladas mais de uma língua. 1 A política lingüística do estado brasileiro voltou-se não apenas contra as línguas indígenas, mas também as línguas dos imigrantes, que sofreram repressão especialmente do regime do Estado Novo (1937-1945), através do processo que ficou conhecido como “nacionalização do ensino”. Nesse período, o governo ocupou as escolas comunitárias e as desapropriou, fechou gráficas de jornais em alemão e italiano, perseguiu, prendeu e torturou pessoas por falarem suas línguas maternas em público ou mesmo privadamente, dentro de suas casas. Segundo dados do Censo do IBGE de 1940, quando o Brasil tinha 50 milhões de habitantes, 644.458 pessoas, em sua maioria cidadãos brasileiros, falavam alemão cotidianamente em casa e 458.054 falavam italiano. Essas línguas perderam sua forma escrita e se afastaram das cidades, passando a ser usadas apenas oralmente e cada vez mais na zona rural, em âmbitos comunicacionais cada vez mais restritos.2
Além da lacuna de conhecimentos e visões de mundo que a perda de uma língua representa, os efeitos de práticas repressoras são certamente devastadores sobre os indivíduos, interferindo
1 OLIVEIRA, Gilvan Muller . Plurilinguismo no Brasil. UNESCO. Brasília, 2008
2 Op.cit
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nas formas como reconhecem suas identidades, se relacionam e se integram socialmente, desenvolvem sua capacidade de aprendizado.
São muitos os avanços no que diz respeito à educação bilíngüe indígena no Brasil, instituída desde a Constituição Federal de 1988 e contando hoje com uma rede de cerca de 2500 escolas indígenas. Segundo Freire, o estágio atual requer sobretudo que se passe a ensinar na língua, e não apenas a ensinar a língua. Isso significa produzir materiais de leitura na língua, aprimorar os cursos de formação de professores, fazer com que a língua saia das aldeias e ganhe lugar nos livros, nas bibliotecas, nos museus e em programas bilíngues no radio e na TV. Ainda segundo Freire, os indígenas que sempre foram os sem-língua, agora ambicionam ter as duas línguas: (...) uma carregada de saberes tradicionais, a outra com os novos saberes, ambos necessários para a (sua) sobrevivência e para a afirmação da (sua) nossa identidade.3
Exemplos como os citados são suficientes para demonstrar que práticas educacionais que incorporem a diversidade cultural como um valor mal começam a ser exploradas e já demonstram um infinito de possibilidades. Ou seja, a agenda sugerida pela Convenção de 2005 está apenas no seu começo. Precisamos, além da capacidade de implementá-la, desenvolver habilidades e mecanismos de crítica e avaliação que nos previnam da dispersão de esforços e dos riscos de uma fragmentação excessiva. Esse, no entanto, é apenas o registro de um alerta que deve permanecer entre nós.Tema, certamente, para debates futuros.
3 FREIRE, Jose Ribamar Bessa. Se eu fosse os índios: as línguas. Diário do Amazonas. Maio 2009
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