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terça-feira, 2 de novembro de 2010

Os negros estão na Igreja por opção



Júlio César Soares põe um capacete branco de proteção. Esta é a senha para entrar na Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, onde andaimes e pó branco se espalham por toda parte. O som das marteladas e da serradeira torna qualquer conversa impossível, mas ele explica pacientemente cada etapa de uma reforma que deve ser concluída em dezembro. Aos 44 anos, ele é o prior da Irmandade do Rosário dos Pretos, ordem religiosa na qual ingressou aos 20, no exato dia de seu aniversário. Era uma segunda-feira de Carnaval, as ruas do Centro Histórico estavam em festa e o jovem rapaz negro, de família católica e amigo do padre da época, entrou no templo com a intenção de rezar. “Me lembro que, depois da missa, uma irmã, a irmã Ernestina, me deu uma bebida feita com erva-doce, mel e aguardente. Era uma tradição oferecer aos convidados”, lembra o chefe da irmandade de 325 anos de existência, hoje com cerca de 450 membros, homens e mulheres, negros. “Ela falou para mim naquele dia que quem bebe dessa erva-doce nunca mais deixa a Irmandade do Rosário”. Fato. Júlio César nunca mais foi embora.De simples irmão a prior,foram 22 anos,e a atividade não parece lhe pesar nos ombros. Pelo contrário. Formado em história pela Universidade Católica do Salvador e pós-graduado em Metodologia do Ensino Superior, transpira a mesma simplicidade dos irmãos que não alcançaram sequer o segundo grau.
A irmandade do Rosário dos Pretos já teve mais de cinco mil irmãos no século 19, hoje tem pouco mais de 450. Essa diminuição é um mau sinal? O mundo muda, as pessoas vão tendo afinidade com outras coisas, a Igreja Católica, que já foi muito forte no passado, hoje está fragilizada. A irmandade era uma tradição que passava de pai para filho, depois para o neto, e isso se perdeu. Mas, na década de 1990, observamos muitas pessoas querendo voltar, tivemos que dar uma freada. Entrar só por entrar não é interessante, estamos há dois anos sem a entrada de novos irmãos.Aproveitamos a reforma( da igreja) para nos organizar internamente e, só depois do próximo ano, incluiremos novas pessoas, como por exemplo o professor Jaime Sodré (PhD em história da cultura negra e ogã no candomblé).
Essa diminuição não se deve ao fato de que, naquela época, pertencer à irmandade era uma forma dê se proteger do regime escravista? Sim, mas eu acho que ainda existe uma busca muito grande por essa identidade. As missas do Rosário, nas terças-feiras, estão sempre lotadas.

Mas, realmente, eram outros tempos, era preciso estar unido contra o inimigo número-um, que era o sistema escravista, e as pessoas tinham que arranjar estratégias de sobrevivência. A capoeira era uma estratégia de sobrevivência, os quilombos, as irmandades religiosas...

Se você observar, todas as irmandades religiosas negras tinham como principal objetivo manter vivas suas tradições. A Irmandade do Rosário é assim, tanto que boa parte dos seus membros também são membros fundadores dos principais terreiros de candomblé de Salvador. Naquela época, era necessária essa aglutinação, nós estávamos sofrendo do mesmo mal,a escravidão. Hoje você tema opção de escolher.Há pessoas do movimento negro que não concordam com irmandades negras católicas.

Só que a Irmandade do Rosário existe há 325 anos. Será que ela não trouxe uma contribuição para o movimento negro atual?
Por que existe esse preconceito? São algumas pessoas. Acham que a gente não deveria estar na Igreja Católica, assim como há pessoas de candomblé que discordam desse diálogo.Mas são pessoas.Há outras que têm respeito.
É aquele argumento da subserviência,de que as tradições do povo negro não precisam estar mais sob o olhar da Igreja? As pessoas não entendem. Nós não somos subservientes, não somos forçados a estar lá. É uma opção, assim como as pessoas optam por ser espíritas, evangélicas, do candomblé.

Os negros que estão na Igreja Católica estão por opção, e lá nós construímos subsídios para mostrar a nossa cultura. Na Bahia, especificamente em Salvador, o movimento negro foi encontrar subsídios na Igreja para se organizar.A Igreja acolheu os Malês (revolta de 1835, provocada por escravos de religião islâmica).

Quer dizer,muçulmanos dentro da Igreja Católica? Mataram os líderes, mas a perseguição continuou, e muitos dos que restaram se converteram ao catolicismo. Na festa da Nossa Senhora do Rosário, o bacalhau era servido com uma peça de toucinho dentro, era uma estratégia criada para mostrar à Igreja que aquela era uma celebração católica, porque muçulmano não come carne de porco. Coisas assim foram subsídios para se criar o movimento negro atual. Fala-se tanto de intolerância religiosa, mas as pessoas acham que a intolerância é só com o candomblé. Há pessoas de dentro do movimento negro que são intolerantes com nossa irmandade.
Correntes mais conservadoras dentro do candomblé são contra o sincretismo religioso, dizem que a cultura negra precisa olhar para si.

Muitos dos nossos membros são ou eram do candomblé. Fundadores como mãe Aninha,do Axé Opô Afonjá, que foi prioreza por 15 anos,mãe Senhora,também do Axé Opô Afonjá, Maria do Rosário, fundadora do Alaketu. Doutora Sandra Bispo, que é do Oxumaré, é nossa procuradora geral. Isso faz parte da nossa identidade, mas alguns radicais acham que não é mais preciso afirmar se católico para praticar o candomblé.

E eu acho que não precisa mesmo. Mas daí a achar que a irmandade não deve existir é um desconhecimento sobre a história do povo negro.
Como é o diálogo coma arquidiocese? A Igreja sabe que existem pessoas que são do candomblé, a grande questão é que nós sabemos respeitar ambas as partes.Nós praticamos nossa fé católica e mantemos o diálogo aberto, de respeito com a arquidiocese.

Devemos respeito ao arcebispo primaz do Brasil (D. Geraldo Majella), seguimos o direito canônico, e nosso capelão tem um diálogo de respeito com todos. Utilizamos instrumentos de percussão, como agogô, atabaque, chocalho,na celebração das missas e alguns motivos da cultura afro, como o acarajé e o abará, no momento de ofertório. É um diálogo,mas sabemos que a hierarquia da Igreja ainda é bastante fechada para esses assuntos.
Parte da classe média soteropolitana vê as missas do Rosário como uma celebração folclórica, exótica. Isso é ruim? É negativo quando deturpam as coisas, dizem que é “missa do candomblé”.

Não falo só do turista, que vem querendo saber, conhecer. Há uma desinformação por parte de gente da terra. Eu já vi um guia dizer para um grupo de turistas: “Ah, aqui é muito interessante, porque primeiro tem a missa, e depois, lá no quintal, funciona um terreiro”.Daí eu disse: “Isso não existe aqui, não, você deve estar confundindo com o Teatro do Senac, onde acontece um show do Balé Folclórico. Aqui é uma Igreja Católica Apostólica Romana, que segue seus dogmas,e o que está sendo mostrado ali no altar é o Corpo de Cristo, não é um bode ou um carneiro”.É absurdo isso,um guia dizer que no quintal tem o assentamento de todos os orixás.
E isso é frequente? Muito. Outro dia, vieram os alunos do Colégio Antônio Vieira, adolescentes na faixa de 11, 12 anos, e um guia começou a dizer que nas missas se cantam músicas em iorubá e que em lugar da hóstia se oferece acarajé.

Quando vejo uma coisa dessas, fico indignado. Alguns pais ligaram para o Vieira procurando saber se estavam levando os filhos deles para conhecer uma igreja católica ou um terreiro de candomblé. Você vê, ainda tem a questão do preconceito. Eu tive que explicar qual o verdadeiro significado da Igreja,que não se canta em iorubá. Pode até ter algumas músicas que fazem referência, mas não são cantadas em iorubá.
O que vocês fazem para que as datas comemorativas da Irmandade do Rosário dos Pretos não sejam vistas, pelo público de fora, apenas como algo que consta de um roteiro turístico? Uma vez, a Bahiatursa colocou num dos folders que são distribuídos para as agências de turismo a festa do Rosário dos Pretos, isso há uns dois anos. Teve uma agência de turismo que vendeu um pacote para 80 afrodescendentes paulistas, para eles virem no último domingo do mês de outubro, que é quando ocorre a festa.

Já estavam incluídos no pacote a confraternização na segunda-feira, o bacalhau,essa coisa(risos).Só que não comunicaram nada para a gente e, como naquele ano tinha eleição, nós antecipamos a festa para um domingo antes.Quando os turistas chegaram, um domingo depois, o nosso funcionário que trabalha na portaria falou que a festa já tinha acontecido. “Ah, mas como aconteceu?”.

Foi um deus-nos-acuda, a agência de turismo teve que devolver o dinheiro. Quer dizer, eles não procuram saber como nós estamos planejando a festa. A gente tem sempre o cuidado de não ficar refém dos órgãos do Estado.O que é interno, nosso, nós preservaremos, mas o entorno não é nosso.
O contrário do que acontece, atualmente, com a Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira? Sim, mas essa é uma opinião particular.

Não se respeita mais a Irmandade da Boa Morte, o que aquelas senhoras fazem, a tradição que elas mantêm. Os turistas que invadem Cachoeira querem ver o espetáculo, a festa, fora os ônibus e mais ônibus que vão para lá. As pessoas não vão no intuito da procissão, elas vão atrás da bebedeira, do sambão.

Mas essa visibilidade não é boa? Pode trazer recursos, mas você fica com a estrutura abalada, fica refém da imprensa sensacionalista que quer tirar proveito daquilo, refém das agências de turismo.Muita gente pergunta por que não se facilita a entrada de novos membros na Boa Morte, mas ela tem as tradições dela.

Muita gente quer entrar para o Rosário porque a roupa é bonitinha, porque tem festa todo dia. Tem que haver um cuidado para que a coisa não se torne folclórica.A mesma coisa é o tombamento. Quando um órgão do Estado ou federal tomba um imóvel, você não é dono daquele imóvel, não pode trocar a peça de uma porta porque tem que pedir permissão, você é refém. O que não queremos é ser reféns.
A Igreja do Rosário é tombada.

É tombada, mas essa é uma das discussões que estamos tendo. Saiu no Diário Oficial que haverá visitas guiadas, mas como podemos fazer visitas guiadas se a igreja está em reforma? O que é estranho é que os órgãos do governo, o Ipac, não sabem dialogar coma cultura local. Empurram para a gente um documento que a gente tem que assinar. Fomos praticamente obrigados a assinar o termo para a visita guiada, mesmo entendendo que havia algumas cláusulas com que não concordávamos.

Aquela igreja tem condições de receber 50 visitantes nessas condições? E eles iam ver o quê? Poeira, andaime, tudo desarrumado? Isso atrasa o andamento das obras,é um desrespeito, e quando a gente tenta dialogar, se utiliza a força.
Então não há um diálogo entre a irmandade e os órgãos do governo? Não há. Não há uma estratégia para que se discuta o que é um patrimônio imaterial, como podemos interpretar esse patrimônio. Essa foi uma das nossas discussões antes da reforma e é agora. Como vamos dar manutenção a um templo se essa irmandade não tem recursos suficientes? Agora vamos ter elevador, rampa para acesso de cadeirantes, mas como essa irmandade vai se manter, dar toda a manutenção a todos os bens que foram recuperados? Até que houve um esforço do governador (Jaques Wagner), mas ainda existem, dentro do governo, pessoas que se utilizam dos mesmos métodos dos governos passados. Isso afasta o Ipac do relacionamento com algumas irmandades e alguns grupos culturais que estão aqui. As pessoas nos tratam com preconceito, acham que são superiores. Todas as vezes que nós tentamos discutir a nossa tradição, o diálogo foi muito pouco. Queremos ser respeitados como uma instituição que tem 325 anos de existência. Temos desde o irmão que não é alfabetizado ao irmão que é doutor, isso desde a época da fundação. Do homem que era escravo até o homem que era livre. É assim até hoje.


A Tarde
Revista Muito

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